Entrevista concedida pelo matemático Artur Ávila à jornalista Lara Sterenberg para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews.
Se você está no ensino médio ou fez carreira em
Exatas sabe muito bem que essa é a fórmula de Bhaskara, caminho mais
curto para resolver uma equação de segundo grau. Mas se você é um dos
muitos brasileiros que têm medo de Matemática, talvez essa sopa de
letrinhas, algarismos e sinais lhe provoque arrepios. Se de modo geral
não somos muito bons com os cálculos, pontos fora da curva existem, e um
dos mais honrosos é Artur Ávila. Único
brasileiro, mais que isso, único latino-americano e lusófono a ter
recebido a Medalha Fields, considerada o prêmio Nobel da Matemática.
Fascinado
por números desde pequeno, Ávila entrou para o mestrado do Instituto de
Matemática Pura e Aplicada, um centro de excelência mundial no Rio de
Janeiro, com apenas 16 anos, antes mesmo de começar a graduação na UFRJ.
Aos 21, terminou o doutorado e meses depois partiu para o pós-doc na
França. Hoje Ávila se divide entre o Brasil e a Suíça, onde dá aulas na
Universidade de Zurique. Sobre o ensino da Matemática no mundo
contemporâneo, ele acha que deve se ensinar menos conteúdo com mais
profundidade e que é importante algum grau de individualização.
Leila
Sterenberg — O Artur Ávila é uma espécie de pop-star da Matemática, a
gente pode dizer isso. Você para pra pensar que você é uma espécie de
ídolo ou de modelo para aqueles milhões de meninos e meninas que todo
ano fazem a Olimpíada Brasileira de Matemática, depois aquele um milhão
de meninos e meninas que vão para a segunda fase e aquele grupo
menorzinho que chega na Olimpíada Mundial pensando “Ah, talvez um dia eu
consiga uma medalha de ouro como o Artur conseguiu”?
Artur Ávila —
Eu não gosto de ter essa responsabilidade, mas eu já tive interações
com esses meninos nas celebrações quando eles ganharam medalhas e etc., e
é positivo ver essa resposta deles, imagino que num universo onde eles
não vejam muitos modelos de Matemática por aí, ter pelo menos alguém que
eles podem imaginar já pode dar alguma ajuda ou motivação extra, então,
mesmo sem querer acaba sendo algo que pode ser importante.
Leila
Sterenberg — Muita gente no Brasil tem medo de Matemática, a pessoa
começa bem, achando divertido, até que chega uma hora que dá um baque.
Por que isso acontece?
Artur Ávila —
Olha, pode ter várias razões. As pessoas tentam achar um responsável
único como um professor, ou como a responsabilidade do governo, etc.
Todos têm essa responsabilidade, mas muito vem da família e do círculo
social, e diria mesmo os meios de comunicação, de como apresentam a
Matemática. Pais que chegam em casa e dizem que “tudo bem você não ir
bem em Matemática, eu também não vou bem em Matemática”, amigos que
chegam no restaurante e dizem “ah, eu não sei, não vou fazer a divisão,
isso aí tem que ir para o engenheiro do grupo”. Isso cria uma situação
onde a criança vê que você não precisa saber Matemática, imagina, quando
na verdade é uma coisa necessária para vários níveis. Então, já criar
uma exclusão nesse momento, seja de ambiente, de amigos ou pais, bem
antes de chegar a questão de como os professores estão ensinando, tudo
isso tem um papel em afetar que algumas pessoas não vão chegar a ponto
nenhum de Matemática.
Leila
Sterenberg — A gente pensa nesses meninos que fazem a Olimpíada de
Matemática que eu citei, e são realmente milhões, acho que 19 milhões de
alunos que participam todos os anos, é uma coisa absurda, de municípios
do interior do Brasil. A Olimpíada, na verdade, não demanda
conhecimento de fórmula, esse tipo de coisa, é muito mais raciocínio, é
um espaço para que sejam pinçados talentos que a gente às vezes nem
imagina que existam?
Artur Ávila —
O sistema de Olimpíada de Matemática como tem sido implantado no
Brasil, com essa amplitude, é uma coisa que data de menos de 20 anos.
Essa amplitude eu considero bastante importante, pois ela cumpre uma
função que acompanha a da escola. Ela não substitui outras iniciativas
de ensino, mas cumpre uma função muito importante de motivação dessa
garotada tão grande com um projeto que, na verdade, é muito barato. É um
projeto que não sobrecarrega o sistema e cumpre uma função realmente
muito eficiente de identificar pessoas que poderiam estar perdidas em
algum lugar sem acesso a estruturas que permitissem levar a cabo o seu
talento, seja por não ter uma universidade perto, ou por não ter
professores com uma formação matemática suficiente para atender onde o
aluno está chegando. Então a gente tem a possibilidade de atingir muito
mais dos talentos que estão espalhados.
Leila
Sterenberg — De modo geral os nossos alunos saem do ensino médio
sabendo muito pouca Matemática, uma simples regra de 3 é um bicho de
sete cabeças para muitos dos nossos alunos. Por que essa
esquizofrenia? O fato de a gente ter um centro de excelência e ter gente
muito boa, não poderia haver uma troca maior de alguma forma?
Artur Ávila — Bom,
primeiro, as coisas funcionam diferente no Brasil e na França, nossos
problemas são diferentes, as dificuldades daqui são muito maiores, mas
essa mesma pergunta já me foi colocada na França. Eles também se
preocupam lá com os resultados no Pisa e observam que a elite matemática
lá tem excelentes resultados. Eles acham que existe esse desnível,
talvez em medida menor do que você mencionou, mas ainda assim eles têm
essa preocupação.
Na
verdade, são problemas muitas vezes distintos: a primeira é a questão de
criar uma formação básica para a população e resolver a questão de
alcançar todo mundo, principalmente em um país de grande tamanho. A
outra é você desenvolver a Matemática na ponta. Às vezes você pode
resolver um problema sem resolver o outro, e pode ser em qualquer
direção. O Brasil, na pesquisa de alto nível, pode estar mais avançado
que a Coreia do Sul, que vai ter resolvido muito melhor a questão do
ensino de base.
Claro que,
se você tem um universo maior de alunos que tenham preparação básica
para Matemática, a gente vai ter uma chance maior de colher possíveis
pesquisadores. Mas, na verdade, é preciso uma preparação tão especial
que não é esse o fator mais limitante desse processo.
Agora,
é preciso haver uma interação e tentar aproveitar a existência do IMPA
para tentar dar um impulso e ajudar nas soluções dos problemas de
educação de base do país. O IMPA, inclusive, tem pego para si já há
algum tempo essa responsabilidade em vários níveis, tanto com a
aproximação, por exemplo, no caso da Olimpíada, como questões de
formação de professores, tentando imaginar iniciativas de criar uma
formação melhor.
Leila
Sterenberg — Você, entre outras coisas, estuda um negócio chamado
sistemas dinâmicos. Eu já tinha pedido um exemplo bem simples, e você
falou dos planetas. Eu vou pedir para você explicar tentando traduzir o
conceito, assim bem feijão com arroz, para quem está em casa.
Artur Ávila —
Esse é o sistema mais clássico para exemplificar, o das fundações dos
sistemas dinâmicos, porque todos foram apresentados à existência de
planetas. As regras mais simples que temos para gravitação, o modelo de
Newton, já descreve de uma maneira muito simples a interação de um
planeta em torno do Sol, no sistema mais simplificado possível. Isso se
aprende na escola, as órbitas em torno do Sol e coisas desse gênero.
Agora,
o que as pessoas não imaginam é que se você imaginar a interação de
dois planetas em torno do Sol é extremamente mais complicada. E desde
Newton há vários problemas não compreendidos sobre esse tipo de sistema.
A interação em um prazo muito longo entre esses astros levanta questões
sobre estabilidade e instabilidade que não foram resolvidas. Não se
sabe, em princípio, qual vai ser a chance de que um dos planetas seja
perturbado pelo outro, até que, digamos, ele escapa do centro solar ou
coisa do gênero.
E é
exatamente essa questão de estudar um fenômeno aparentemente simples no
curto prazo. Não há muita dúvida, não tem nenhum planeta escapando do
Sol de hoje para amanhã e a gente tem muita confiança que não vai
acontecer nos próximos cem mil anos ou coisa parecida, mas se imaginar
que o processo se repete em um tempo muito, muito, muito longo, a
questão se torna uma questão de sistemas dinâmicos, muda o nível de
dificuldade e outras possibilidades aparecem.
Isso
é uma coisa que a gente estuda, nesse modelo, por exemplo, e inspirado
por esses modelos e em muitos outros modelos, alguns mais aplicados a
problemas concretos e outros que têm uma relevância maior simplesmente
na Matemática mesmo.
Leila
Sterenberg — Muita coisa na Matemática é igual desde os gregos. Se
a Matemática em boa parte é a mesma desde os gregos, o jeito de ensinar
Matemática tem que mudar ou pode ser o mesmo desde os gregos?
Artur Ávila —
A Matemática tem esse aspecto de permanência que é uma vantagem e uma
desvantagem. A vantagem é que o que foi feito pelos gregos de fato
continua válido até hoje. O que a gente está fazendo agora, a gente tem a
confiança de que continuará sendo válido daqui a mil anos, isso dá um
certo prazer.
Mas também
vejo que cria uma percepção errada das coisas, porque a gente faz uma
Matemática que os gregos não poderiam imaginar. E dentro dessa
continuidade há muita inovação, não pára, é um processo contínuo. E para
uma pessoa que não está tendo esse contato é muito difícil imaginar,
porque na escola as pessoas vão aprender a base, vão ser expostos à
Matemática dos gregos, nada muito moderno, criando uma percepção de que
talvez a Matemática tenha parado.
Mas
quem faz Matemática, faz umas contas um pouco mais complicadas do que
aquelas que a gente estava aprendendo na escola. Enquanto em outras
disciplinas, por exemplo, na Química do ensino médio, vai haver coisas
que são descobertas bastante recentes. Qualquer coisa do século XX em
termos de Matemática seria extremamente recente e você só aprenderia bem
mais tarde, talvez no mestrado, enquanto estão falando disso no ensino
médio, da Biologia, na Física, etc.
O
resultado é criar essa impressão negativa de que a Matemática já foi
compreendida e agora é só utilizada para outras coisas. Então, é uma
dificuldade que aparece. Eu acho que realmente não se pode atropelar a
base, a Matemática é muito cumulativa, você não ir para o fim sem ter
passado pela parte inicial. Essa é uma característica bastante
particular quando você compara com outros campos. Quando você imagina
como ensinar Matemática, tem que ter atenção a essa especificidade.
Leila
Sterenberg — Eu entrevistei o Andreas Schleicher que é um alemão que
criou o Pisa, e ele disse que “o Pisa vai mudando, e agora a gente vai
começar a medir coisas como resiliência, criatividade, capacidade
empreendedora”. Uma coisa que ele defende muito é que os currículos
sejam mais enxutos, quer dizer, tenham menos matérias e possa haver uma
profundidade maior no aprendizado. Você acha isso desejável para a
Matemática também? Se a gente na escola tivesse mais tempo para
mergulhar mais fundo na Matemática na verdade ela seria mais prazerosa?
Que Matemática você gostaria, por exemplo, que estivesse sendo ensinada
para o seu filho pequeno?
Artur Ávila — Olha,
eu acho que qualquer maneira de apresentar Matemática tem que focar na
individualidade dos estudantes. As pessoas vão ter características
diferentes, não tem uma fórmula que se vá se adequar. Acho que o sistema
de ensino deve conter, em si, uma diversidade, a possibilidade de o
estudante buscar a coisa que mais se adeque a ele.
Mas
certamente eu acho que é negativo você ter uma quantidade muito grande
de material que vai ser visto muito superficialmente, porque isso impede
o estudante de se aprofundar, ele fica tão disperso que, mesmo que
tenha vontade, não vai ter tempo para se concentrar naquilo depois. Então, coloca-se essa questão de currículo, e depois a questão de profundidade.
Isso
se aplica até na universidade. Eu vejo currículo universitário, a
quantidade das coisas que os estudantes precisam aprender e imagino se
você realmente quiser se dedicar a cada uma dessas você não vai estar
aprendendo realmente bem nada, você vai estar só correndo para cumprir
as funções básicas e satisfazer para você tirar nota para passar.
Isso
quando uma pessoa deveria buscar o que vai inspirar, ter o tempo para
se dedicar mais a algum dos temas. Então, talvez, deveria se permitir
uma quantidade menor de conteúdos, com mais tempo para olhar e tentar
interpretar o que cada estudante vai se interessar mais. Mas claro que
tem que ser criada a oportunidade para eles terem tempo de descobrir o
que interessa a eles, então nisso passa uma parte de estar o universo a
ser ensinado um pouquinho mais enxuto.
Leila
Sterenberg — A Matemática tem alguns problemas clássicos, famosos,
entre vocês matemáticos, alguns estão por ser resolvidos há dezenas, às
vezes centenas de anos. Você tem algum problema fetiche, que você
gostaria muito de resolver e no qual você fica pensando de vez em
quando?
Artur Ávila —
Olha, tem problemas que interessam a todos os matemáticos. No meu
campo, por exemplo, um dos problemas é o problema da conectividade local
do conjunto de Mandelbrot, que vai ser difícil de explicar. Basicamente,
existe um conjunto fractal muito bonito, as pessoas podem buscar
conjunto de Mandelbrot no Google, e depois vocês podem fazer ampliações
desse conjunto e ver pedacinhos muito interessantes.
Tem
um problema matemático que simplesmente diz a estrutura desse conjunto
em escalas muito pequenas. Esse conjunto, quando se olha em escalas
muito pequenas, ele não se quebra em pedacinhos. Então isso que é a
conectividade local, e esse problema parece simplesmente ser uma questão
sobre um pequeno desenho, como é que ele vai ser.
Parece
muito esotérico, mas ele tem a ver com questões muito profundas da
estrutura dos sistemas dinâmicos de um certo tipo, que se relaciona
também com geometria e outras coisas, são várias áreas ligadas ao mesmo
tempo. A Matemática tem disso, às vezes tem uma questão que pode ser
formulada como uma curiosidade, mas na verdade essa questão em
particular tem uma grande profundidade, e, se você conhecer
suficientemente da teoria, você pode identificá-la.